O escritor estadunidense de história homossexual Rictor Norton fala sobre o falso entendimento de que pederastia era coisa do passado e que relações homoafetivas masculinas igualitárias (androfilia) são "invenção recente".
A maioria das análises gerais da história homossexual afirma que existe uma linha clara de desenvolvimento que vai de (1) antigas relações pederásticas, passando por (2) relações de patrono/protegido no início da era moderna, até (3) relações igualitárias modernas. Não é por acaso que isso se assemelha à suposta dialética que leva do (1) feudalismo, passando pelo (2) capitalismo, até (3) uma sociedade sem classes. Todos os três paradigmas foram simplificados e exagerados, e a suposta mudança de um período para outro não pode ser sustentada sem ignorar uma série de exceções.
A premissa básica de que o modelo dominante de homossexualidade masculina mudou do modelo antigo e pré-moderno, no qual os parceiros eram significativamente separados pela idade (transgeracional, intergeracional, interidade) para o modelo moderno, no qual os parceiros têm aproximadamente a mesma idade (igualitário, androfilia), é desafiada pelo fato de que modelos igualitários também existiam nos tempos antigos e modelos transgeracionais também existem nos tempos modernos.
Uma exceção notável à suposta regra, datada de cerca de 2600 AEC, é o túmulo de Niankhkhnum e Khnumhotep, descoberto na necrópole de Saqqara, Egito, em 1964. Trata-se de um túmulo conjunto, construído para dois homens coabitarem pela eternidade. Nos dois pilares que ladeiam a entrada, ambos os homens recebem o título idêntico de "Manicure e Supervisor dos Manicures do Palácio, Conhecido do Rei e Confidente Real". Acima da entrada, os nomes dos dois homens são combinados em um só, com um jogo de palavras que significa "Unidos na Vida e Unidos na Morte". Os homens receberam o túmulo do Rei Niusere da Quinta Dinastia. Embora ambos fossem casados com mulheres e tivessem filhos, uma série de baixos-relevos os retrata abraçando-se como amantes.
![]() |
Niankhkhnum (esq.) e Khnumhotep (dir.) |
As primeiras evidências escritas de relações especificamente homoafetivas também mostram o amor de dois homens egípcios adultos, embora de classes diferentes: o amor do Rei Pepi II Neferkare (Phiops II; 2355–2261 AEC) por seu General Sasenet (ou Sisene).
O amor de Aquiles e Pátroclo, descrito por Homero durante o século VIII AEC, é claramente um exemplo de amor igualitário, em vez de pederastia institucional. Mas autores posteriores a Homero impuseram um modelo pederástico ao par igualitário/andrófilo, em consonância com o modelo pederástico encontrado na Grécia de sua época (séculos V e IV AEC). Eles estranhamente retrataram Pátroclo como o catamita (erômenos, o mais novo e "passivo"), embora, na verdade, ele fosse cerca de um ano mais velho que Aquiles. Tornou-se tão comum considerar relacionamentos homoafetivos antigos como exemplos de pederastia que chegamos a pensar em Alexandre e Heféstion como um caso em questão, quando, na verdade, Heféstion era um nobre da Macedônia e tinha a mesma idade de Alexandre. Muitos casais em listas de amantes famosos que se destacam na tradição literária homossexual são igualitários, em marcante contraste com a tentativa moderna de impor o modelo pederástico a eles.
![]() |
Aquiles enfaixa o braço de Pátroclo |
Historiadores da homossexualidade reconhecem que a relação transgeracional era idealizada, mas raramente vão além, o que é necessário para observar que a própria diferença de idade faz parte de uma ficção ideal e não da realidade. A obra de Ihara Saikaku, no século XVII, "deixa claro que a formulação estrita do amor masculino como uma relação entre um homem adulto e um jovem é frequentemente mantida apenas na forma de encenação fictícia" (Schalow, "Introduction", 1996). Em um conto, o jovem samurai e seu amante têm ambos 19 anos. Em outro, o samurai tem 66 anos e seu amante, 63, mas ainda ostenta o penteado "de jovem". Em outro, um samurai de 14 anos, a fim de estabelecer sua nova masculinidade, sai e conquista um "jovem" – um ator/prostituto de kabuki de 24 anos.
![]() |
Dois samurais praticando sexo anal (note que ambos têm os mesmos penteados e o penetrado porta as duas espadas de um samurai, indicando que eles têm o mesmo status e talvez idades aproximadas) |
A ideologia das relações homoafetivas igualitárias não é um produto do capitalismo ou da era moderna, mas é diretamente rastreável à tradição literária homossexual clássica e renascentista (Norton, 1974). Boswell (1994) também apontou que a ideologia das uniões homoafetivas medievais iniciais enfatiza sua mutualidade e igualdade, em marcante contraste com a ideologia das uniões heterossexuais, que sempre enfatizam a subordinação e a posse da mulher pelo homem. As cerimônias de união homoafetiva seguem de perto as cerimônias de casamento heterossexual, mas omitem notavelmente a seção sobre um parceiro "cedendo o controle" ao outro. A própria ascensão do "casamento por companheirismo" baseia-se em vários séculos da filosofia da amizade entre pessoas do mesmo sexo. A camaradagem "fraternal" tem sido emblemática dos relacionamentos homoafetivos há muitos séculos, a tal ponto que eles têm sido percebidos como uma ameaça às estruturas hierárquicas da sociedade heterossexual, desde a época de Harmódio e Aristógiton até a época de Oscar Wilde e suas "panteras", ou garotos da classe trabalhadora em ascensão. A visão de que todos os relacionamentos homoafetivos no mundo antigo eram temporários e relacionados à idade "é exagerada até mesmo para Atenas, e os relacionamentos homoafetivos no resto da Europa antiga eram certamente muito mais variados e flexíveis do que isso, provavelmente não muito diferentes de suas contrapartes heterossexuais... A maioria dos escritores antigos... geralmente nutria expectativas mais elevadas quanto à fidelidade e permanência das paixões homossexuais do que quanto aos sentimentos heterossexuais" (Boswell, 1994).
O foco na juventude é característico do discurso clássico sobre pederastia, não por ser pederástico, mas porque o amor e o desejo românticos sempre pressupõem uma diferença de idade, e o amor romântico para os gregos era frequentemente homossexual, e não heterossexual. Presume-se que todo desejo romântico, tanto heterossexual quanto homossexual, seja direcionado aos jovens, e "a maioria dos homens atenienses se casava com mulheres consideravelmente mais jovens do que eles" (Boswell, 1990). No que diz respeito às evidências transculturais, muitos intérpretes aplicam, de forma enganosa, o impreciso termo "sexo intergeracional" a relacionamentos que normalmente implicam uma diferença de idade de apenas metade ou um terço de uma geração.
O único significado válido de "geração" é a diferença de idade entre pais e filhos, ou seja, a "lacuna geracional". Em estudos históricos e antropológicos, ela é geralmente definida com referência à idade média em que um homem se casa e tem filhos, ou seja, a diferença de idade entre um pai e seu primogênito. Uma geração, portanto, equivale a 20 a 30 anos e, na maioria dos escritos históricos, denota um período de 25 anos (ou seja, quatro gerações por século). Mas a diferença média de idade nos chamados relacionamentos homoafetivos "intergeracionais" é geralmente de sete anos, raramente de quinze anos e mais raramente ainda de uma geração completa. O relacionamento clássico de pederastia militar institucional em Esparta e Creta é entre um "ouvinte" (erômenos) de 12 anos e um "inspirador" (erastes) de 22 anos: uma lacuna de 10 anos. Relacionamentos heterossexuais em sociedades antigas e indígenas, em contraste, são invariavelmente "intergeracionais" por esse padrão; na verdade, geralmente a diferença de idade entre homens e mulheres no casamento é significativamente maior do que entre parceiros homoafetivos. No modelo espartano/cretense, o homem de 30 anos se casaria com uma mulher de 18, um intervalo de 12 anos – dois anos a mais do que o intervalo entre "ouvinte" e "inspirador". Aristóteles recomendava que os homens se casassem aos 37 anos e as mulheres aos 18 (Boswell, 1994) — propondo 19 anos como o intervalo intergeracional ideal em casamentos heterossexuais!
Der Eigene foi publicada na Alemanha de 1898 a 1930. A literatura homossexual do final da era vitoriana e eduardiana é dominada por temas pederásticos (Reade, 1970). Relações com jovens de classes mais baixas é uma característica comum da homossexualidade na Inglaterra, pelo menos até a década de 1930. Na França, os pédérasts eram os papéis homossexuais arquetípicos até a década de 1950. No sul da Europa, hoje, é comum haver diferenças significativas de idade entre os parceiros, e mesmo na França o pédérast ainda é um importante paradigma cultural homossexual.Foi somente no final da década de 1960, especificamente nos Estados Unidos, que a androfilia ou homossexualidade igualitária passou a ser considerada o modelo ideal para uma democracia homoafetiva moderna, e o modelo pederástico foi caracterizado como explorador. Mas as primeiras coletâneas de poesia sobre a libertação "gay", como "Angels of the Lyre", de Winston Leyland, ou "The Male Muse", de Ian Young, ou o diário Manroot, de Paul Mariah, contêm uma superabundância de versos pederásticos. As revistas fotográficas homossexuais em Londres eram dominadas por rapazes adolescentes esguios durante a maior parte da década de 1970. Tipos robustos e rudes não eram comuns até a década de 1980, e "homens mais velhos" não eram objetos comuns de desejo até o final da década de 1980 (desde que usassem couro). A visão de que uma "transição fundamental" ocorreu é dificilmente sustentável para o período desde 1969 e comprovadamente falsa como um indicador do período "moderno" em geral.
![]() |
Bona e Quorum, revistas "gays" britânicas dos anos 70 |
Eu me deleito com a flor da idade de um menino de doze anos, mas um de treze é muito mais desejável. Aquele que tem quatorze anos é uma flor ainda mais doce dos Amores, e aquele que está apenas começando seu décimo quinto ano é ainda mais encantador. O décimo sexto ano é o dos deuses, e quanto ao décimo sétimo, não cabe a mim, mas a Zeus, buscá-lo. Mas se alguém tem desejo por aqueles ainda mais velhos, ele não brinca mais, mas agora busca "E respondendo-lhe de volta". ("O Menino Musa" de Estratão de Sardes, Antologia Grega, Livro XII, 4)
![]() |
Davi e Eu, de Steve Walker (1962-2012) |
Fico surpreso sempre que ouço dizer que relacionamentos assimétricos por idade são coisa do passado. Uma olhada em uma fotografia de Christopher Isherwood com seu amante Don Bachardy (30 anos mais jovem) deveria dissipar a noção de que "pederastia" é puramente um paradigma antigo. Em 1996, o Mr Gay UK ("Mister Gay Reino Unido"), Roy Fairhurst, tinha 20 anos e seu amante, 36; ele adotou o sobrenome de seu companheiro, uma prática não incomum. Na cultura heterossexual, relacionamentos entre pessoas com idades muito díspares são quase tão comuns hoje quanto costumavam ser na Idade Média. Fotografias de casais nas "páginas sociais" de jornais e revistas contemporâneos deixam claro que homens ricos e importantes têm esposas visivelmente mais jovens do que eles. Quando um empresário de sucesso se casa pela segunda vez, ela tem sempre a mesma idade da primeira, embora ele próprio tenha dobrado de idade. Quanto mais alto o status de um homem na "alta sociedade", mais jovem sua esposa provavelmente será (e sua amante ainda mais jovem). Sempre foi assim.
É extraordinário como as pessoas se dizem chocadas com relacionamentos entre homens com idades díspares, mas ignoram o fato de que, por exemplo, Charles Dickens começou seu caso com a atriz Ellen Ternan quando ela tinha 17 anos e ele, 46 (em 1858, quando ele abrigou sua esposa Catherine em um estabelecimento separado, o que foi um escândalo; ele vazou uma carta para a imprensa alegando que ela sofria de "transtorno mental"). Dickens satisfazia suas necessidades sexuais com moças jovens visitando bordéis de luxo sob a orientação especializada de Wilkie Collins. Acadêmicos e críticos que castigariam Johann Winckelmann, de 45 anos, por se apaixonar por Friedrich Rudolph von Berg, de 26, mal levantariam as sobrancelhas ao saber que, em 1996, o popular dono de boate londrino Peter Stringfellow, de 55 anos, morava com sua namorada Helen Benoist, de 17 anos. Quando ele a levou para Nova York em 1995 e ficou no Hilton, "eu mantive segredo de que Helen tinha apenas 16 anos... Lembre-se, em Nova York você tem que ter 21 anos para beber e 17 para fazer sexo — maravilhosa hipocrisia americana" (Sunday Times, 26 de maio de 1996).
![]() |
Jack Twist e Ennis del Mar em Brokeback Mountain. Amor masculino igualitário (androfilia) existe desde os primórdios da humanidade |
Texto de RictorNorton, 2002 (traduzido pelo dono deste blog)
Se você gostou deste artigo, por favor deixe um comentário abaixo e/ou compartilhe, e considere seguir o blog (clicando no botão "Seguir" ou "Follow" à direita da página em "SEGUIDORES").
Nenhum comentário:
Postar um comentário